Mundos internos e o desafio da convivência psíquica nas relações, por Maria Klien

 

Foto: @FREDERICONCEPTUAL

Relações afetivas se sustentam na interseção de mundos internos. Cada pessoa traz organização psíquica própria, construída por experiências, histórias familiares, valores, estratégias de proteção, desejos e crenças sobre vínculo. Quando essas estruturas se encontram, o amor pode estabelecer aproximação imediata. Porém, a continuidade desse encontro depende de algo mais complexo do que a força inicial do afeto.

Em muitos relacionamentos, a sensação de incompatibilidade não surge da falta de sentimento, mas da ausência de um território que permita que duas realidades coabitem sem anulação mútua. A clássica imagem do pássaro e do peixe ilustra configurações simbólicas distintas. Não há erro no voo nem na água. Há ecologias internas que não foram criadas para o mesmo ambiente. Ainda assim, vínculos se formam tentando conciliar essas diferenças.

A psicologia analítica compreende que relações maduras exigem que o casal construa plano comum capaz de receber as singularidades de cada um. Sem essa elaboração, surgem dois universos paralelos, próximos na rotina e distantes na experiência afetiva. A convivência permanece possível, porém frágil, sem referências compartilhadas para decisões, conflitos e projetos.

“O pássaro e o peixe expõem o contraste entre sistemas internos que não conversam. As pessoas se conectam pelo afeto, mas se afastam pela ausência de linguagem simbólica que permita sustentar convivência. O vínculo existe, só não tem onde acontecer”, disse a psicóloga Maria Klien.

A metáfora não aponta para amores inviáveis. Aponta para estruturas psíquicas que precisam dialogar a fim de criar realidade conjunta. Em vez de duas esferas fechadas, surge a necessidade de um terceiro lugar onde o encontro se torne possível sem violência às identidades já formadas.

“Jung não afirmava que diferenças impedem compromisso. Ele enfatizava que, sem consciência, o relacionamento permanece preso a padrões inconscientes que repetem desencontros. É preciso abertura para que ambos produzam campo compartilhado. Não é o mundo de um nem do outro. É o que nasce entre os dois”, afirmou.

Esse espaço não está dado desde o início. Ele se forma na prática relacional, com escolhas cotidianas, rituais, combinados, interpretações de acontecimentos e nomeações comuns para o que se vive. Esse campo simbólico sustenta possibilidade de negociação quando desejos entram em conflito e evita que um precise abandonar quem é para permanecer ao lado do outro.

“O amor não resolve divergências de história, estrutura ou ritmo. O que transforma incompatibilidades é a disposição para criar fronteira nova onde ambas subjetividades permaneçam reconhecidas. Quando existe esse movimento, diferenças deixam de ser ameaça e se tornam parte da construção”, ressaltou.

A clínica contemporânea mostra que muitos vínculos chegam ao limite por tentarem encaixar a pessoa amada em moldes internos já conhecidos. A tentativa de conversão da identidade do outro produz rupturas silenciosas que se acumulam ao longo do tempo.

“Relacionamentos amadurecem quando dois aceitam que não podem viver integralmente na realidade do parceiro. A solução está em criar mundo novo, onde cada um continue pertencendo a si e, ao mesmo tempo, pertença ao encontro”, concluiu a psicóloga.

Para Maria Klien, cuidar de vínculos significa reconhecer limites estruturais e cultivar espaço de relação entre diferenças. Somente assim o afeto deixa de ser sobrevivência e se torna experiência de criação conjunta, capaz de produzir novas formas de existir em comum.

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