Publicidade
Maria Klein - Foto Divulgação
Maria Klein – Foto Divulgação

A relação entre os canabinoides e os processos psíquicos tem despertado crescente interesse entre os profissionais da saúde mental, sobretudo diante da complexidade dos transtornos emocionais e da limitação dos tratamentos tradicionais em responder, de forma integral, às demandas clínicas dos pacientes. O avanço nas pesquisas envolvendo os compostos derivados da Cannabis sativa, especialmente o canabidiol (CBD) e o tetrahidrocanabinol (THC), tem oferecido novas perspectivas terapêuticas que merecem análise criteriosa e aprofundada.

O sistema endocanabinoide exerce papel regulador sobre diversas funções neurofisiológicas, como a modulação da memória, do sono, do apetite e da resposta ao estresse. Esse sistema, identificado nas últimas décadas, é composto por receptores (CB1 e CB2), endocanabinoides endógenos (como a anandamida) e enzimas responsáveis pela síntese e degradação dessas moléculas. A interação entre tais componentes parece influenciar diretamente circuitos neurais envolvidos na autorregulação emocional e na homeostase psíquica.

As evidências mais robustas até o momento se concentram no uso do canabidiol em quadros de ansiedade generalizada, fobia social e transtorno do estresse pós-traumático. Ensaios clínicos randomizados indicam redução significativa dos sintomas após administração controlada do composto, com poucos efeitos adversos reportados. Em populações específicas, como pacientes refratários à farmacoterapia convencional, observou-se melhora na qualidade do sono, redução de ruminações mentais e diminuição da hipervigilância.

Por outro lado, o tetrahidrocanabinol ainda suscita controvérsias devido à sua atuação bifásica: em doses reduzidas, pode contribuir para a diminuição da ansiedade e favorecer a regulação emocional; em concentrações elevadas, tende a exacerbar sintomas ansiosos e pode induzir quadros psicóticos transitórios, especialmente em indivíduos com predisposição genética. Essa dualidade exige protocolos rigorosos, supervisão contínua e mapeamento prévio do histórico familiar dos pacientes.

Há carência de estudos longitudinais que verifiquem os efeitos do uso contínuo da cannabis medicinal em populações com transtornos de humor e quadros depressivos persistentes. Faltam, ainda, investigações sistemáticas que avaliem a interação entre canabinoides e psicoterapias de orientação psicodinâmica ou cognitivo-comportamental. Tais lacunas dificultam a elaboração de diretrizes consensuais que contemplem diferentes perfis psicopatológicos.

Outro aspecto pouco explorado diz respeito ao impacto subjetivo do tratamento com fitocanabinoides. A experiência de melhora emocional, relatada por muitos usuários, não encontra paralelo direto com os desfechos clínicos mensurados em escalas padronizadas, o que evidencia a importância de incorporar abordagens qualitativas às pesquisas quantitativas. A escuta clínica, nesse contexto, torna-se instrumento fundamental para compreender as transformações ocorridas no campo afetivo.

Em paralelo, observa-se que a legislação vigente em diversos países ainda impõe barreiras significativas ao avanço das investigações científicas. A classificação da cannabis como substância de controle restrito limita o acesso de pesquisadores aos insumos necessários, além de dificultar a obtenção de financiamento público para ensaios de larga escala. A superação desses entraves institucionais constitui etapa indispensável para o desenvolvimento de uma ciência comprometida com a pluralidade terapêutica.

Importa ressaltar que a atuação do psicólogo diante do paciente em tratamento com cannabis medicinal requer escuta ética, conhecimento técnico e atualização constante. O profissional deve ser capaz de distinguir os efeitos psíquicos decorrentes do uso dos compostos daqueles relacionados à dinâmica subjetiva pré-existente, sem preconceito, mas com responsabilidade clínica e epistemológica.

Diante disso, conclui-se que a cannabis medicinal representa uma possibilidade em expansão no campo da saúde emocional, mas cuja consolidação depende do avanço científico, da formação adequada dos profissionais e da revisão dos paradigmas que, por muito tempo, marginalizaram suas potencialidades. Ainda há muito a ser investigado, descrito e compreendido, sobretudo no entrelaçamento entre neuroquímica, psique e experiência humana.

VOCÊ TAMBÉM PODE GOSTAR

Instagram

Twitter