É difícil precisar a influência que Anna Wintour exerceu sobre a moda e sobre a cultura em sentido amplo desde que assumiu a direção da Vogue americana, em 1988. Com o anúncio recente de sua renúncia ao cargo de editora-chefe da edição dos Estados Unidos, após quase quatro décadas no comando, se encerra um capítulo não apenas para a editora Condé Nast, mas para toda a arquitetura de poder que sustentou o mundo do estilo nas últimas gerações.
Embora Wintour ainda mantenha seus cargos de diretora editorial global da Vogue e diretora global de conteúdo da Condé Nast, sua saída da condução diária da principal edição da revista sinaliza algo mais profundo do que uma simples reorganização hierárquica. Marca um ponto de inflexão para o jornalismo de moda, para as fronteiras cada vez mais tênues entre poder e persona, e para uma geração inteira que cresceu acreditando que a influência podia ser perfeitamente moldada, ajustada e capturada na capa de setembro.
A trajetória de Wintour sempre foi um paradoxo e um equilíbrio entre a austeridade distante e a astúcia popular, entre a preservação de códigos estéticos da elite e a comercialização do estilo em algo quase democrático. A mulher que teria inspirado a personagem de “O Diabo Veste Prada” levou Hollywood para dentro da moda e a moda para o centro da cultura popular. Promoveu estilistas antes mesmo que as luzes da passarela se apagassem, transformou o Met Gala em espetáculo quando o tapete vermelho ainda não era calibrado por algoritmos e construiu uma instituição em torno de sua própria figura, tão rígida quanto seu corte de cabelo e tão impenetrável quanto seus óculos escuros. Mas por trás dessa fachada cuidadosamente composta, Wintour coreografou uma nova era, na qual a moda é marcada por branding e convertida em commodity. E, agora, faz surgir a pergunta: a era Wintour foi uma exceção histórica ou a culminação de um modelo de dominação editorial do século 20 que enfim chegou ao fim?
A resposta talvez esteja em algum ponto entre o mito e a máquina. Wintour ascendeu na era analógica, quando editores eram guardiões e não influenciadores e as 800 páginas da edição de setembro impunham reverência sem precisar recorrer a métricas, e a crítica de moda significava mais do que compilações de tendências ou links afiliados. Ainda assim, ela soube se adaptar e, para muitos, brilhantemente. Se tornou patrona da expansão digital sem nunca abrir mão de seu papel de árbitra, abraçou a cultura das celebridades não como ameaça, mas como extensão natural de seu universo, e convidou influenciadores para dentro das páginas sagradas da revista. Mas toda adaptação tem seus limites, e nos últimos anos surgiram dúvidas sobre a capacidade de a Vogue manter sua relevância em uma era menos definida pela curadoria do que pela velocidade.
Sob esse aspecto, a saída de Wintour simboliza o lento e inevitável descolamento entre identidade e instituição. Por décadas, a Vogue era Wintour, e Wintour era a revista. O gosto da editrix moldava a linha editorial da cultuada publicação, suas capas, sua relação com a política, com a arte, com o protesto. Mas o custo de tamanha centralização sempre foi a fragilidade, e a ausência de um sucessor claro revela o quão pessoalizado seu comando se solidificou. Não há herdeiro declarado para a edição americana. Em vez disso, a Condé Nast criou uma nova função (“diretor de conteúdo editorial”) num movimento claro de diluição, e não de concentração, de poder. É uma decisão tanto pragmática quanto simbólica. O futuro da mídia de moda, ao que tudo indica, será colaborativo, horizontal, multiplataforma. E não usará franja.
Para compreender plenamente o significado dessa dança de cadeiras, é preciso olhar além do universo editorial. Wintour não foi apenas uma editora de revista, mas sim uma diplomata cultural. Sua atuação ultrapassou os limites das páginas e ensaios de moda, se estendendo aos domínios da filantropia, da política e do poder brando global. Ela ajudou a impulsionar nomes como Alexander McQueen e Tom Ford, mas também arrecadou fundos para campanhas presidenciais e causas humanitárias, com a segurança de quem compreende que o gosto, quando bem exercido, é uma forma de governança. Seu alcance ia da Casa Branca ao Palácio de Kensington, de Pequim a São Paulo, como uma das raras figuras que podiam chamar Michelle Obama e Karl Lagerfeld de conhecidos íntimos – e que, apesar de tropeços e padrões de responsabilização em constante mutação, conseguiu se manter no centro do poder.
Suas críticas foram muitas, e nem todas injustas. Acusações de exclusão, de conservadorismo estético disfarçado de inovação, de tokenismo mal calculado ou mal conduzido pairam sobre seu legado. A crise interna na Condé Nast em 2020, provocada por denúncias de funcionários sobre falta de diversidade e representatividade, expôs uma rachadura visível em sua armadura. Seu pedido de desculpas subsequente, embora significativo, não apagou a memória de décadas em que a voz mais poderosa da moda parecia, por vezes, desalinhada das vozes que pretendia amplificar.
Wintour, por mais visionária que fosse, às vezes errava na leitura do momento cultural. Mas, se esse é um defeito, é um que ela compartilha com as instituições que ajudou a erguer. Muitas das quais estão, agora, enfrentando suas próprias revisões de consciência.
A ‘aposentadoria’ dela sua maior função histórica, portanto, não é apenas um momento pessoal, mas estrutural. O ecossistema editorial que ela ajudou a moldar está se fragmentando. A autoridade está cada vez mais descentralizada. As novas mídias, os algoritmos das redes sociais e a preferência da Geração Z por autenticidade em detrimento do polimento transformaram radicalmente o papel do editor de moda. O que antes era curado de cima para baixo, agora é ditado de baixo para cima ou, mais precisamente, de forma lateral, por comunidades que se auto-organizam em torno de gosto, identidade e crítica cultural. O desfile de moda deixou de ser evento fechado e hoje é live no TikTok.
Os guardiões desapareceram, ou viraram consultores de marca. As publicações tradicionais lutam para manter relevância diante de canais no YouTube e servidores no Discord. Até o tapete vermelho, antes território exclusivo de Wintour, agora oferece outro tipo de espetáculo, em parte dirigido por stylists, porém também editado por contas de memes e pela cultura dos fãs.
Tal fragilidade institucional exposta pela saída de Wintour é intensificada pelos dilemas que a própria Condé Nast enfrenta nos bastidores, com uma sequência de cortes de custos, demissões em massa e a unificação de redações globais têm redesenhado o grupo editorial mais como um conglomerado em busca de eficiência operacional do que como uma catedral da cultura impressa. A queda nas receitas publicitárias, a dificuldade em monetizar o prestígio acumulado em décadas de domínio e a pressão constante por relevância digital impõem um cenário em que decisões estratégicas são tomadas mais por imperativo econômico do que por visão editorial.
O que a Vogue será após o afastamento de Wintour depende menos de quem ocupará seu lugar e mais da capacidade da revista de redefinir o que significa liderar. Será preciso navegar um mundo onde a autoridade estética é plural, política e constantemente contestada. E será necessário fazê-lo sem o símbolo unificador da vontade editorial de sua chefe de redação mais famosa. No entanto, esse desafio talvez represente uma oportunidade. Se há uma lição que seu reinado nos deixou, é que a moda, embora obcecada por legado, sobrevive pela reinvenção, e silhueta mais duradoura é aquela redesenhada para se ajustar ao presente.
Há, é claro, a tentação de romantizar a era Wintour ou de enxergar em sua partida o fim da elegância, da estrutura, de certo glamour editorial que um dia deu sentido à página brilhante. Mas a nostalgia é uma métrica pobre para o progresso. O que vem a seguir talvez seja mais caótico, menos imaculado mas também mais inclusivo, mais espontâneo, mais afinado às frequências culturais que vibram logo além da passarela.
Wintour não liderou apenas uma revista. Muito além disso, ela orquestrou uma mitologia e sua saída pode parecer o fim dessa mitologia, mas também abre espaço para uma nova forma de ditar moda. Se a Vogue continuará a moldar o futuro ou se limitará a refletir o presente dependerá de sua capacidade de recuperar a ousadia que lhe garantiu relevância. A mesma que, um dia, definiu sua rainha em retirada.
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