Nelson Rodrigues dizia que o dinheiro compra até amor verdadeiro. Mas, na romântica Veneza, nem todos os bilhões de Jeff Bezos foram suficientes para comprar benevolência popular ou licença poética. Como escreveu o italiano Italo Calvino, contemporâneo de Rodrigues, “a cidade não conta seu passado, ela o contém como as linhas de uma mão”. E os venezianos, cientes de cada vinco da história, recusaram que sua paisagem virasse altar de um amor embalado em dólares. Talvez o autor de “A Vida Como Ela É” nunca tenha tido um amor à italiana… E Veneza – feita, ainda segundo Calvino, de “relações, não de pedras” – ensina que vínculos verdadeiros não se compram.
Em meio a intensas manifestações e a gritos de “No space for Bezos” (“Aqui não é lugar para Bezos”, em tradução livre), o comentado mega casamento do cofundador da Amazon e Lauren Sánchez em Veneza (programado para o decorrer dessa semana) precisou ser deslocado da histórica Scuola Grande della Misericordia, antigo centro de caridade renascentista construído em 1507, para o complexo do Arsenale, o imponente estaleiro naval que simboliza a pujança da outrora República de Veneza no século 12 e que hoje abriga a Bienal. Local mais protegido e isolado, foi a resposta do casal – no momento a bordo do mega-iate de US$ 500 milhões (R$ 2,8 bilhões), batizado “Koru” – à crescente insatisfação na sociedade europeia com os privilégios dos 1% que, justamente, só o dinheiro pode comprar.
A mudança de última hora é uma vitória simbólica para ativistas e moradores responsáveis pelo ‘fora’ levado por Bezos e Sánchez. Sem dar muita bola para o grande dia do casal (tudo ideia da ex-repórter, de acordo com publicações dos Estados Unidos), os opositores planejavam obstruir os canais navegados por gôndolas cheias de turistas, uma das marcas registradas de Veneza, com crocodilos infláveis, para deixar claro que sua cidade existe para ser vivida ao invés de servir de palco para celebrações nababescas. Para eles, a presença dos mais de 200 convidados pelos dois, incluindo celebridades como Oprah Winfrey, Leonardo DiCaprio e Ivanka Trump, soa desproporcional num destino turístico que há anos enfrenta esvaziamento populacional e lida com uma crise habitacional agravada pela visitação de alto padrão que infla preços, pressiona serviços e expulsa os moradores originais.
Mas protestos como os orquestrados contra Bezos refletem mais do que uma ação isolada contra luxos exibicionistas. São sintoma de uma insatisfação estrutural com bilionários (nesse caso, envolvendo um dos poucos centibilionários existentes) que, segundo os venezianos, transformam cidades históricas em vitrines privadas, usando seus vastos recursos financeiros como passaporte irrestrito, sem sequer serem contestados.
Não por acaso, o sonoro ‘arrivederci’ ao magnata americano está sendo celebrado como “vitória da cidadania” pelos venezianos que o bradaram. Aos gritos, já haviam ocupado a Ponte de Rialto e o campanário de San Giorgio Maggiore no fim de semana passado, denunciando a “exploração” de Veneza por “forasteiros”.
O episódio também expôs com clareza outro dilema crônico: Veneza está afundando literal e metaforicamente. Grandes eventos como esse, que envolvem carga pesada para montagem de estruturas e o transporte de convidados VIPs, geram ondas intensas nos canais. Conhecidas como “moto ondoso”, essas ondulações aceleram a erosão das fundações centenárias da cidade, alicerces projetados para uma realidade bem mais leve, e que hoje custam caro para manter.
E a relevância política do imbróglio extrapola as fronteiras de Vêneto, a comuna em que fica Veneza. De Barcelona a Palma de Mallorca, protestos contra o “turismo de luxo predatório” têm se intensificado, indicando uma tendência europeia de reavaliação dos privilégios da elite global. Bezos, cuja fortuna é estimada em US$ 227 bilhões (cerca de R$ 1,26 trilhão), viu o impacto simbólico de seu casamento-espetáculo se somar a um sentimento crescente de desconexão entre as elites e as realidades locais.
Tal rejeição aos muito ricos – sejam eles bilionários ou os chamados ‘UHNWI’ (sigla usada por bancos de investimento para designar ‘Indivíduos de Patrimônio Extremamente Elevado’, com patrimônios líquidos acima de US$ 30 milhões, ou cerca de R$ 166,8 milhões) – não é novidade no Velho Continente, que em 2024 foi ‘invadido’ por aproximadamente 747 milhões de turistas, o equivalente a mais de 70% de sua população residente, estimada em cerca de 449 milhões. Essa maré humana, somada aos moradores fixos, torna inevitável que todos sintam os efeitos de movimentos em escala tão colossal. Mas são justamente aqueles que vivem nos destinos mais visados que, após o frenesi das visitas, precisam arrumar a casa e arcar com o custo do excesso.
Na costa espanhola, o verão de 2023 foi marcado por pichações em iates e protestos exigindo limites ao turismo de impacto e à compra de imóveis por estrangeiros endinheirados. Na Riviera Francesa, manifestantes interromperam jantares privados de bambambãs do setor tech durante o Festival de Cannes, ao som de “sem tapete vermelho para os donos do mundo”. Em Zurique, rostos de bilionários estampavam vitrines da Bahnhofstrasse, um dos CEPs mais caros da Europa, acompanhados da pergunta: “Por que eles têm tudo e nós pagamos a conta?”.
O clima de insatisfação transborda das ruas para as urnas e para a legislação. Capitais como Lisboa, Amsterdã e Berlim adotaram recentemente medidas contra o emburguesamento causado por investimentos especulativos em imóveis, especialmente em zonas centrais. Em Paris, um relatório da prefeitura revelou que mais de 20% das propriedades residenciais de luxo do Marais, bairro chic da Cidade Luz, pertencem a apenas 15 famílias bilionárias da França, e várias com domicílio fiscal fora do país. Dados assim têm inflamado debates sobre justiça fiscal, moradia e soberania urbana.
Disputas que colocam o turismo de luxo contra questões de cidadania, como a travada entre Bezos e os venezianos, expõem uma encruzilhada inevitável nos destinos mais cobiçados do século 21, e os que mais podem aproveitá-los custe a quem custar. Nesse sentido, a recuada estratégica do bilionário, que cedeu ao barulho das ruas e buscou um local mais discreto para se casar, reverberou entre seus pares do jet set da NASDAQ e afins, todos sempre atentos a tudo que circula sob o sol europeu no verão, sobretudo quando se trata de mudanças de ânimos.
Os personagens e os palcos podem até ter mudado, mas tensões como essa não são novidade. No século 18, os salões dourados de Versailles e os banquetes aristocráticos já simbolizavam uma elite alheia ao cotidiano popular. “Comam brioches”, teria dito Maria Antonieta. A frase, talvez apócrifa, virou sinônimo do desprezo hierárquico de quem nunca soube o preço do pão. Hoje, ecoa como algoritmo frio de quem se nutre de códigos e cifras inalcançáveis. Como se a fome de muitos pudesse ser saciada com confeitos de vitrine belos ao olhar, mas amargos ao gosto dos que não os provam, e que há muito deixaram de confundir doçura com justiça.
Rousseau, muito antes da Revolução, advertia que o contrato social se desfaz quando as diferenças materiais se tornam desigualdades morais. Tocqueville, um século depois, diria que o ressentimento popular cresce não na extrema pobreza, mas diante da percepção de que alguns vivem acima da lei e estão imunes à crítica.
Troquem os nobres de outrora por bilionários tech, e os castelos por iates de última geração, e a lógica se mantém, com uma minoria cada vez mais abastada e sem pudor para gastar, mas confrontada por uma maioria cada vez mais lúcida e menos passiva diante de tudo que evidencie a discrepância entre uma e outra.
No fim das contas, a reação de Bezos pode ser lida como ato simbólico, reflexo de um leve deslocar de placas tectônicas sociais. Em tempos de mares revoltos, sacudidos por ondas de desigualdade, até os mais ricos precisam recalcular rotas quando o espetáculo não é mais recebido com flores, mas com cartazes dos verdadeiros anfitriões, que são aqueles que, até aqui, haviam sido tratados como figurantes.
Se Veneza recusou ser altar de um amor bilionário de um barão do Vale do Silício, talvez tenha sido para lembrar que ‘La Serenissima’, apelido que ganhou da diplomacia europeia para evocar sua vocação à serenidade e soberania, é mais que um cenário encantado. É uma cidade com memória, valores e dignidade indisponível para aluguel, nem que o inquilino em questão seja o quarto homem mais rico do mundo.
Quando se pode tudo, o risco é esquecer que há coisas que realmente não se compram. Não por falta de recursos, mas por excesso de mundo. E é justamente esse excesso que, em tempos de tantas carências, alimenta revoltas que não são contra um casamento exuberante com orçamento ilimitado, mas contra a ideia de que até o amor precise virar espetáculo para o espectador comum – que, como provaram os moradores de Veneza, ainda preferem romances menos açucarados, com finais felizes para todos, de preferência acessíveis como e-books baratos da Amazon, e não exclusivos como os lugares que fortunas como a de Bezos quase podem bancar.
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