“Coloque seu filho em uma escola bilíngue, não passe nem perto do açúcar, evite qualquer tipo de piada, malhe todos os dias”: em tempos corretos – demais –, a patrulha está em toda parte. Quanta chatice! J.P alerta: é preciso relevar para sobreviver.
Por Julia Furrer para revista Joyce Pascowitch de outubro
“Vivemos a sociedade do controle”. Se a frase do sociólogo Dario Caldas, diretor do Observatório de Sinais, soa familiar, esqueça o acaso. Basta olhar ao redor para perceber como há sempre alguém opinando sobre nosso comportamento, ideologia, desejos e por aí vai. É o sexo que deve ser adiado até o terceiro encontro, a selfie que é cafona, a lactose que de repente ganhou ares de vilã e até o conteúdo das – antes inocentes – histórias infantis. Tudo virou motivo para patrulha. E haja jogo de cintura para enfrentá-la.
O termo apareceu por aqui no fim dos anos 1970, época em que o Brasil vivia a ditadura militar. Naquele tempo, com a censura vigente, a conotação tinha a ver com o controle imposto pelo governo. Hoje, o cenário é outro e cá estamos diante dos benefícios da democracia. No entanto, se por um lado nossa liberdade individual está garantida, nunca estivemos tão viciados em palpitar na vida alheia. “A patrulha de agora vem sendo criada pela própria sociedade. Sem perceber estamos nos tornando máquinas de controlar”, afirma Caldas. Mas, afinal, por que será que nos sentimos no direito de emitir tanta opinião sobre tudo – e para todos?
Uma das explicações pode ser o excesso de exposição do mundo contemporâneo. Se antes só os amigos mais próximos conheciam nossos hábitos, hoje, com as redes sociais, é fácil ficar por dentro – e em tempo real – de todos os detalhes da vida alheia. Um casamento que está por um fio, o filho que trocou de escola, a academia que ficou em vigésimo plano e tantas outras (supostas) intimidades. E ainda há espaço para curtir e comentar. “O grande problema é que quando todo mundo conta tudo, aumenta nosso sentimento de insuficiência”, afirma a psicanalista Joana de Vilhena Novaes. Quem aí nunca sentiu aquela culpa por ter faltado na ginástica, não acompanhar as novidades no cenário cultural, não ser uma mãe e mulher-maravilha, enfim: não dar conta? Daí a querer se autoafirmar patrulhando os outros é um pulo. Joana explica: “O gozo de comentar a vida ao lado é a falsa sensação de que conseguimos nos incluir em tudo. É como se nossa identidade se formasse por oposição a de outro alguém”.
Entre os agravantes do mundo digital está a confusão que se faz com liberdade de expressão e obrigação de expressão. Ou seja: há que se ter opinião sobre qualquer assunto, mas, convenhamos, nem sempre elas são válidas – e desejáveis para quem as recebe. A apresentadora Sarah Oliveira, 35 anos, sentiu isso na pele durante sua gravidez. “Uns me diziam que a cesariana era um crime, outros condenavam o parto humanizado com todas as forças. Muitos falavam que era um absurdo dar chupeta e, nisso tudo, eu só pensava que era um absurdo achar qualquer coisa um absurdo”, lembra. Para quem exerce a patrulha, as verdades são tão absolutas que não existe qualquer outra possibilidade. “Mas cada um tem sua própria experiência, então é muito difícil projetar no outro suas expectativas e frustrações”, complementa Sarah.
Não é novidade que a mídia exerce um papel de peso na criação e disseminação dessas certezas. Basta ligar a televisão para assistir a inúmeros exemplos de como se vestir, decorar a casa, malhar e até namorar. “E vem tudo mastigado”, complementa Joana. É também por causa da mídia que a patrulha segue modismos. Hoje se odeia o glúten, amanhã vai saber… A alimentação, aliás, é um dos principais alvos dessa paranoia contemporânea. E vai pedir um bacon extra no seu hambúrguer para ver o espanto ao redor.
A gerente de marketing paulistana Luiza Yang, 27 anos, concorda. Longe de ser do tipo que vive de dieta, ela dispensa academia e já foi criticada por seus hábitos pouco saudáveis. “Às vezes percebo minhas amigas chocadas porque pedi sobremesa no almoço. Até meu pai chama a atenção quando como algo muito gorduroso”, conta. Se ela se incomoda? “Não acho que sou 100% livre, mas penso que muito da beleza tem a ver com autoestima. Claro que tem dias que eu acordo mais encanada, mas acho que é legal tentar priorizar outras questões: Sou uma boa cidadã? Tenho informações relevantes para votar conscientemente nessas eleições? Esse tipo de coisa ocupa mais meu tempo que pensar sobre a ditadura da beleza (e olha que eu trabalho em uma empresa de moda).” O filósofo Luiz Felipe Pondé segue a linha de Luiza. Afinal, assim como pirraça de criança, a patrulha só tem efeito contra quem é vulnerável. “Ela depende do quanto você depende do que os outros pensam de você. O efeito é diretamente proporcional ao quanto você se sente frágil. Se quer muito ser amado e convidado para o jantarzinho, não tem jeito.” A escritora Tati Bernardi, 35 anos, é alvo constante de censura pelo que escreve em sua coluna no jornal Folha de S.Paulo, mas nem por isso se deixa abater. “Sou bem xingada pelo meu tipo de humor, mas meus textos traduzem o que me incomoda ou me emociona. Se me podasse, estragaria tudo. O cronista, sobretudo de humor, não pode abrir mão de sua capacidade de rir – de si e do mundo.”
A fotógrafa Alice Araujo, 32 anos, é outra que já passou por essas situações, mas aprendeu a desencanar. Sem nunca ter tido o sonho de se casar, acabou entrando na onda pela insistência de amigos e familiares, mas fez questão de fazer tudo do seu jeito. Nada de igreja, vestido tradicional, pose para fotos, aliança ou mesa de doces. Mas, para tal, precisou ser teimosa. “As pessoas não se conformam quando você coloca suas negativas. Tem de ter muita segurança para não acabar fazendo o que os outros querem”, afirma. E vale lembrar que nem sempre a enxurrada de opiniões é colocada por maldade. Para Alice, quem se meteu “estava apenas tentando mostrar o quanto se importavam com aquele momento”. Mas a verdade é que toda patrulha tem esse ar de boas intenções.
O movimento do politicamente correto – mais correto, impossível, vale lembrar – é outra patrulha que virou febre nos dias de hoje. O status parece defender o mundo de preconceitos, mas pode ser perigoso quando se leva em conta a liberdade de expressão. É claro que deve existir a ética, o certo e o errado, mas ninguém se beneficia de extremos. “Estamos muitos mais caretas do que nos anos 1970. Os fumantes viraram vegans, os punks viraram nerds, é tudo muito chato. O politicamente correto sintetiza um manual de controle autoritário”, desabafa Caldas. E haja crianças que não atiram o pau nos gatos e lobos que em vez de avós comem cenouras! Para Tati, o mundo está chato: “As pessoas querem parecer intelectuais com doutorado em sociologia. Elas exibem altruísmo como se fosse um colar de pérolas”.
A consequência disso tudo? Perdemos totalmente nossa naturalidade. “Ser espontâneo já é considerado brega”, diz Pondé. E salve-se quem puder.