Professora de formação, Lucinha Araújo nunca deu aula. Aos 19 anos ela já estava casada com João Araújo e garantia boa parte da renda da família costurando vestidos de noivas e tudo mais que as amigas pedissem. Depois que João fundou a Som Livre, ela passou a dedicar mais tempo ao filho, Cazuza, que faria 52 anos neste domingo. Lucinha falou com exclusividade ao Glamurama.
Quando começou a se envolver com projetos sociais?
“Sempre! Desde muito nova fui muito voltada pra isso, me preocupava com quem tinha menos do que eu. Já trabalhei em hospitais, no presídio feminino de Bangu, creche. Estudei em colégio de freira e sempre ajudei as crianças menores na escola.”
Mas você imaginava que um dia iria ter uma instituição?
“De jeito nenhum. Nem sei onde estaria hoje. Na verdade, ia continuar me metendo na vida do Cazuza, enchendo o saco dele, cuidando do dinheiro, dos pagamentos. E não ia servir pra nada, né? Mas se eu não tivesse vivenciado a dor dessa doença, jamais teria me envolvido. Ia querer distância, é muito sofrimento. Digo que fui contagiada pelo vírus.”
Você se dedica integralmente ao seu trabalho na Sociedade Viva Cazuza?
“Eu me dou muito para isso aqui, e recebo muito em troca. Mas não posso ficar só aqui, senão perco meu marido. No período da manhã faço as prendas da casa. A partir do meio-dia venho pra cá. No fim de semana fico com o João, o tempo é dele. Mas eu gosto muito de sair também. Tenho 73 anos e adoro uma farra, uma bagunça, gosto de me divertir.”
Como a sociedade se mantém?
“Ela vai completar 20 anos e, com o passar do tempo, o nosso ganho com os direitos autorais do Cazuza vão diminuindo, embora as músicas dele ainda sejam regravadas. O dinheiro que conseguimos não cobre 20% dos nossos gastos, que giram em torno de R$ 60 mil a R$ 70 mil por mês. Só tenho três amigos que doam todo mês. Temos 24 funcionários trabalhando lá, dos quais eu preciso pagar o salário, todos os direitos.”
Desde quando a instituição está passando por essas dificuldades?
“Olha, já tivemos momentos melhores. Quando saiu o filme ‘Cazuza – O Tempo Não Para’, conseguimos nos manter por dois anos só com o dinheiro arrecado por ele. Durante o governo do Fernando Henrique Cardoso, eu tinha dois amigos parlamentares que sempre conseguiam aprovar nossos projetos e aí conseguíamos subsídio federal. Depois que mudou o governo, foi ficando mais difícil. Não consegui uma reunião com o presidente Lula, mas mandei uma carta para ele. Ele respondeu, mas ainda não tivemos nenhum resultado. O governador do Rio, Sérgio Cabral, nos ajuda, mas só até o fim deste ano.”
Quais são os trabalhos realizados na instituição?
“Faço tudo aqui, todo tipo de atendimento para pessoas que têm o vírus HIV. Damos todo o tipo de assistência médica, de remédios a odontologia. Fazemos aquilo que o governo não faz. Atualmente, temos 22 crianças carentes que moram na instituição, às vezes porque os pais já morreram, ou porque não têm condições de morar com a família. Essas crianças precisam de alimentação, remédios, dinheiro para pagar escola particular. Posso dizer que eles têm uma vida que muito filho de amiga minha não tem. Gostaria de abrir ‘filiais’ em outros lugares, mas não consigo. Mal consigo manter esta unidade. Além disso, fazemos palestras, distribuímos cestas básicas, remédios, camisinhas…”
Como você vê a mudança em relação ao preconceito contra os homossexuais?
“Hoje em dia as coisas estão muito diferentes. Afinal, já estamos nos anos 2000. Como o João é do mundo da música, vivíamos com artistas e a gente já estava acostumado a conviver com homossexuais. Mas isso não quer dizer que eu tenha aceitado a homossexualidade do meu filho sem temor. O caminho das minorias é de muita dor. A sociedade não aceita plenamente. Queria poupá-lo disso. Mas ele não pode ser comparado a ninguém.”
Você acha que um portador do vírus HIV sofre menos preconceito nos dias de hoje?
“Diminuiu, mas ainda existe. A coragem que o Cazuza mostrou ao falar que tinha Aids foi mais importante até do que o legado que ele deixou na música. Isso ajudou soropositivo a mostrar a cara. Aqui, se as minhas crianças sofrem preconceito, eu dou um show. Não sou de brincadeira. Sou leonina! E melhor do que um vidro de remédio é um beijo de mãe.”
Você é muito apegada a eles?
“Sofro quando algum deles é adotado ou volta para a família. Muitos deles preferem ficar aqui, tenho orgulho de dizer que isso é melhor que a casa deles. Foi por isso que consegui superar esses 20 anos sem o Cazuza, senão já teria morrido.”
Cazuza completaria 52 anos no dia 4. O que você costuma fazer nestas datas marcantes?
“Celebro uma missa todo dia 7 de julho – data da morte – e 4 de abril. Vou ao cemitério, deixo flores para ele, converso, conto novidades… É muito duro, mas tenho coisas boas pra lembrar dele. Então não gosto de ficar lembrando do período de sofrimento, de dor. Vou fazer uma missa nesta segunda-feira pra ele e vou levar as crianças da instituição. Sei que ele está muito bem, mas peço que rezem uma ‘Ave Maria’ para ele, nunca é demais.”