O brutal assassinato do herdeiro do Hospital 9 de Julho, em SP

João Carlos Ganme: assassinado em 1999

Por Paulo Sampaio para revista Joyce Pascowitch de outubro

Como fazia sempre que chegava ao escritório, o auxiliar de compras José Roberto Garcia pediu em voz alta à secretária para abrir a porta. “Sô, sou eu!” Naquela tarde, porém, Soraia Carla Mielli não se manifestou – e a porta estava apenas encostada. Garcia empurrou-a de leve, entrou de mansinho e viu que o computador dela permanecia ligado, sem ninguém à mesa. Atraído por gemidos, ele foi até o banheiro e se deparou com Soraia sentada no vaso sanitário, a boca selada com fita crepe e os pés amarrados. Depois de livrá-la, seguiu para a sala do chefe. Encontrou-o deitado de bruços com a camisa rasgada, sobre uma poça de sangue. João Carlos Ganme, 39 anos, havia sido assassinado com 37 golpes de faca aplicados em sua nuca, costas e pescoço. Soraia ficou em estado de choque. Garcia, nem tanto…

João Carlos era filho de João Ganme, dono do Hospital 9 de Julho, em São Paulo, e passara a ocupar o escritório onde ocorreu o crime para comandar dali os negócios de criação de gado e exploração de madeira na fazenda da família, nas proximidades do município de Barra do Garças, no Mato Grosso. O escritório ficava na sobreloja do edifício Nagib Ganme, na rua Augusta, centro de São Paulo. A princípio, a polícia trabalhou com a hipótese de latrocínio. As primeiras informações davam conta de que no dia 21 de outubro de 1999, por volta das 16h, dois homens bateram à porta do escritório e anunciaram: “Entrega!”, mostrando um envelope pelo olho mágico. De acordo com o relato de Soraia, então com 27 anos, os bandidos a empurraram quando ela abriu a porta, gritando: “Cala a boca! Isso é um assalto!”, e a conduziram para o banheiro. À polícia, ela disse que não poderia reconhecer os dois porque ambos usavam boné e se mantiveram o tempo todo com a cabeça baixa.

 Bastante Machucado 

A pedido de José Roberto Garcia, o zelador do edifício chamou a polícia.  Enquanto isso, o próprio Garcia se ocupou de comunicar o crime aos familiares. Ligou para o Hospital 9 de Julho e, aos prantos, informou ao médico Anis Ganme que seu sobrinho havia sofrido um assalto e estava “bastante machucado”. Sem poder avaliar o tamanho da atrocidade, Anis seguiu às pressas para o edifício da rua Augusta, na esperança de socorrer João Carlos. Ao tomar o pulso dele e perceber que estava morto, ainda quis virar o corpo e tentar um último recurso, mas foi contido por um policial. Outro tio de João Carlos, Antônio Ganme, administrador do 9 de Julho, tinha preparado a emergência para receber o sobrinho “bastante machucado”. “Imediatamente, mandei providenciar a sala de cirurgia, médicos e UTI”, lembrou Antônio em seu depoimento (O hospital não pertence mais à família). Foi ele que se incumbiu mais tarde de dar a notícia ao pai da vítima. A essa altura, irmãos, mãe e outros parentes de João Carlos começavam a chegar ao escritório.

 Surfista bonitão

Casado, pai de um filho de 2 anos, João Carlos Ganme era surfista, amante da natureza, e também frequentador de um clube de tiros e colecionador de armas. De acordo com amigos e parentes, tinha “verdadeira paixão pela polícia”; em 1997, prestou concurso para ser investigador, mas foi reprovado. Pensava em tentar de novo. Considerado boa-pinta, ele terminou um relacionamento de dez anos para ficar com Patrícia Consentino, mãe de seu filho, que conheceu no Natal de 1992 quando ela trabalhava em uma butique na rua Oscar Freire, em São Paulo. Já casados, os dois costumavam descer todos os fins de semana para Maresias, no litoral norte, onde tinham casa em um condomínio.

Para controlar de perto os negócios na fazenda, João Carlos passou a viajar pelo menos uma vez por mês à Barra do Garças. Um dia, Patrícia recebeu um telefonema anônimo de uma mulher afirmando que o marido tinha uma amante no Mato Grosso. Muito ciumenta, ela foi ao escritório do marido e revirou suas gavetas atrás de algum indício. Pouco tempo depois, João Carlos saiu de casa e providenciou um flat para morar. Mas logo o casal se reconciliou.

 Mudança de Rumo

A polícia abandonou a hipótese de latrocínio quando um homem chamado Cacildo de Jesus Lopes foi morto a tiros em Araçatuba, interior de São Paulo. A investigação do crime levou os policiais até Wagner Meira Alves, 39 anos, administrador da fazenda dos Ganme: ele foi apontado como o principal suspeito de ser o mandante do assassinato de Cacildo. Para entender a relação entre os dois crimes, é preciso voltar ao ano de 1995, quando João Carlos Ganme assumiu a fazenda e passou a acompanhar de perto o trabalho do administrador.

Alves, que estava lá havia 15 anos e gozava de plena autonomia para decidir sobre os negócios com o gado e a madeira, não gostou. Tinha receio que João Carlos descobrisse as transações ilícitas que perpetrava e também as operações com tráfico de drogas. O salário do administrador, de aproximadamente R$ 2,5 mil, não condizia com seu patrimônio. Além de três caminhões Volvo, era proprietário de um carro importado. E, definitivamente, não tinha a menor intenção de abrir mão desse padrão de vida. A solução que encontrou não poderia ser mais simples: matar o patrão.

Formação do Bando  

Em seu plano, Alves envolveu nada menos que cinco homens.  Para comandar a operação, chamou os irmãos Altair e Airton Gilio, o primeiro era marido de sua enteada, e o outro, traficante de drogas com um trânsito providencial entre matadores de aluguel. Os dois contrataram os serviços de Cacildo e do gráfico Antônio Roberto Cerato, encarregados da execução de João Carlos. Cada um levaria R$ 20 mil. A fim de evitar qualquer tipo de contratempo quando Cacildo e Cerato chegassem à rua Augusta, Alves precisava do apoio de alguém que conhecesse a movimentação no escritório e pudesse facilitar a entrada dos assassinos no local. O homem que deu esse suporte foi o auxiliar de compras José Roberto Garcia, o mesmo que, no dia do crime, aos prantos, comunicou a tragédia aos parentes da vítima. Aos 44 anos,  Garcia já trabalhava havia 13 com a família. Recebeu R$ 5 mil pela participação.

Dois dias antes do crime, ele viajou a Araçatuba para combinar detalhes com os assassinos. Como a segurança no edifício Nagib Ganme era bastante precária, não contando com câmaras atualizadas, Cacildo e Cerato só precisavam saber o horário em que encontrariam João Carlos sozinho com a secretária. Ficou combinado, então, que deveriam chegar por volta das 16h15 do dia 21. Propositalmente, Garcia não estava no escritório. Saiu de lá dizendo a Soraia que faria um serviço externo. Nesse tempo, monitorou a portaria do prédio até que os assassinos se foram.

 Traído pelo Boné

Depois de matar João Carlos, os criminosos caminharam até a rua Bela Cintra, a duas quadras do escritório, e pegaram um táxi rumo à rodoviária. Cacildo deixou cair no ponto o boné azul que estava usando. No dia seguinte, quando chegou em casa, sua mulher, Ana Maria Oliveira, estranhou vê-lo em roupas muito largas (que ele usou para se “camuflar”) e, segundo disse em seu depoimento à polícia, deu pela falta do boné. Cacildo contou a ela que tinha sido assaltado. Confrontada na delegacia com três modelos diferentes de boné, entre eles o que foi achado na rua pelos taxistas, ela imediatamente reconheceu o do marido.

Lembrou ainda que, em agosto, Cacildo havia comentado que estava para receber um dinheiro bom. “De onde?”, ela perguntou. “Uma cobrança”, ele respondeu. Um mês depois do crime, no dia 21 de novembro, Cacildo chegou em casa com vários envelopes contendo notas de R$ 50 e R$ 100, totalizando R$ 16.800 (ele já havia gasto uma parte dos R$ 20 mil). Disse que Antônio Cerato recebera a mesma quantia e que tinha comprado uma moto grande com o dinheiro. Algum tempo depois, Cacildo começou achar que havia sido lesado na gratificação e passou a cobrar mais do mandante do crime. Wagner Meira Alves não viu outra saída senão eliminá-lo. Para tanto, contou com a colaboração de mais um criminoso, Ralbert Marques,  a quem pagou R$ 15 mil.

 Agressão Física 

As revelações desencadeadas com a investigação do assassinato de Cacildo levaram o delegado Antônio Carlos Diniz dos Santos, responsável pelo inquérito que apurava o caso de João Carlos no Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa (DHPP), a convocar Wagner Meira Alves e José Roberto Garcia para prestar depoimento. Sabendo que agora suspeitavam deles, os dois passaram a reagir surpresos, alegando que eram “empregados de confiança da família Ganme” e que seria até ofensivo cogitar tal absurdo. “Vamos conversar com o delegado em São Paulo, assim a gente resolve logo isso”, teria dito Alves para Garcia, segundo o depoimento do primeiro ao juiz.

Ambos acusaram o delegado Diniz de tê-los agredido fisicamente para obrigá-los a confessar o crime. Chegaram a afirmar em juízo que o delegado tinha ganhado dinheiro de João Ganme para incriminá-los. “Fui coagido a depor através de pancada (…) Ouvi conversas de que ele (Diniz) ganhou US$ 250 mil (…) O doutor João queria ver os assassinos presos”, declarou Alves. Garcia afirmou ao juiz que havia perdido vários dentes por causa dos socos no rosto que levara do delegado.  Por sua vez, João Ganme passou a ser ameaçado de morte por comparsas de Alves e precisou contratar seguranças para acompanhá-lo dia e noite.

 Erro Judicial

Presos preventivamente, Garcia, Altair e Airton Gilio foram os primeiros a ser julgados. Garcia e Altair pegaram 17 anos de prisão, e Airton, 14. Por um erro, o Supremo Tribunal Federal (STF) revogou a prisão preventiva de Garcia, sem saber que o Tribunal de Justiça (TJ-SP) havia recusado uma apelação dele e transformado sua pena em definitiva. Apesar de a informação constar do cartório do TJ, nenhum funcionário a havia encontrado. Como já tinha cumprido parte da pena, Garcia conseguiu o benefício de passar o restante em liberdade condicional.

O promotor Roberto Tardelli, o mesmo que atuou no caso de Suzane von Richthofen, encarregou-se no Ministério Público da acusação de Antônio Roberto Cerato; Maurício Antônio Ribeiro Lopes incumbiu-se de Wagner Meira Alves. Apesar de o DHPP ter dado o caso como esclarecido cerca de quatro meses depois do crime, em fevereiro de 2000, o julgamento dos dois só ocorreu em 2008. Eles foram os últimos a ser submetidos a júri.

 Menor Ideia

A defesa de Antônio Roberto Cerato argumentou que ele acompanhou Cacildo de Jesus à rua Augusta sem saber o que o outro faria lá, e que segurou a arma, mas não ameaçou ou amarrou a vítima.  O advogado Silvio Marsiglia, de Cerato, afirmou ainda que seu cliente “evitou que Cacildo matasse a secretária para que ela não os delatasse”. Foragido desde 2007, Cerato foi preso pela Polícia Federal em Cuiabá, menos de um mês antes do julgamento. Assim como Wagner Meira Alves e José Roberto Garcia, ele também argumentou que fora obrigado a confessar sua participação no crime. De acordo com Marsiglia, “o avião [que trouxe Cerato de Cuiabá] foi fretado pelo pai da vítima e o delegado ameaçou jogá-lo lá de cima se ele não confessasse”. Cerato foi condenado a 17 anos de prisão por homicídio triplamente qualificado – motivo torpe, meio cruel e sem possibilidade de defesa da vítima.

Wagner Meira Alves, que seria julgado no mesmo dia, foi beneficiado por um habeas corpus concedido pelo desembargador Luiz Pantaleão. “Isso é escandaloso”, reagiu o promotor Maurício Ribeiro Lopes, referindo-se à estratégia de defesa de Alves, que trocou 12 vezes de advogado para postergar o processo. Um ano antes, ele havia sido preso pela Polícia Federal durante a operação Kolibra, desencadeada para desarticular um esquema de tráfico internacional de drogas. Aguardava o julgamento no Centro de Detenção Provisória (CDP) de Guarulhos, na Grande São Paulo.

Somente em abril do ano passado foi submetido a julgamento. O 1º Tribunal do Júri de São Paulo o condenou a 19 anos de prisão, mas cabia recurso e ele poderia aguardar a decisão final em liberdade. De acordo com o advogado Alberto Zacharias Toron, assistente de acusação, “ficou claro que João Carlos foi morto porque atrapalhou os negócios de Alves, inclusive os ligados ao tráfico de drogas”. Toron lembrou aos jurados que, na época da operação Kolibra, o réu foi condenado a oito anos de detenção por tráfico. Apesar das ameaças de morte, João Ganme nunca desistiu de capturar os assassinos de seu filho, até morrer de um câncer que a família atribui ao desgosto da perda.

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