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São quatro jovens nascidos entre 1995 e 1996, mas o que os une é a mitologia da música que se fazia até 25 anos antes de seus nascimentos. Colegas de escola na adolescência, os cariocas Dora Morelenbaum, Julia Mestre, Lucas Nunes e Zé Ibarra tinham carreiras solo ou em outras bandas quando estabeleceram uma comunidade em meio à pandemia de coronavírus. O quarteto acabou virando Bala Desejo, uma das sensações da cena carioca e nacional de, digamos, MPB underground.

No início deste ano, apresentaram o álbum “Sim Sim Sim” (Coala Records), resultado da imersão coletiva das cantoras e compositoras Dora e Julia com Lucas e Zé, já companheiros na banda Dônica, de Tom Veloso, filho de Caetano. A atmosfera neotropicalista e setentista que cerca o Bala Desejo começa pela proximidade com a família Veloso, mas vai bem mais longe.

Os quatro dizem que o tempo em que viveram juntos na casa de Julia pouco se assemelha à experiência hippie dos anos 1960 e 1970, de comunidades musicais como Mutantes e Novos Baianos. “Não é uma comunidade hippie. Tem alguma coisa a ver, mas a gente nunca foi hippie de verdade para saber o que é”, afirma Dora. Ela é filha de Jaques Morelenbaum, o maestro que ajudou a definir a sonoridade de Caetano Veloso na década de 1990, e de Paula Morelenbaum, vocalista da banda de Tom Jobim entre 1984 e 1994.

“Comunidade hippie é mais um nome lúdico que uma realidade. As pessoas sabem que a gente não é hippie de fato”, complementa Lucas, que atuou como um dos produtores de “Meu Coco” (2021), o álbum mais recente de Caetano.

“Comunidade hippie é mais um nome lúdico que uma realidade. As pessoas sabem que a gente não é hippie de fato”

Lucas Nunes

Mesmo sem ser hippies de fato, o Bala Desejo constrói uma sonoridade em grupo que remete diretamente àquele imaginário. Para começo de conversa, cantam quase sempre a quatro vozes, em uníssono, um artifício que os Doces Bárbaros usavam em 1976. “Baile de Máscaras (Recarnaval)”, primeira canção de “Sim Sim Sim”, lembra de perto o canto de anunciação “Os Mais Doces Bárbaros”.

Nesse aspecto, comunicam-se também com os neotropicalistas Arnaldo Antunes, Carlinhos Brown e Marisa Monte que cantaram em coro seus experimentos como Tribalistas, originalmente em 2002 e num reencontro em 2017. O Bala persegue o caminho do trio paulista-baiano-carioca mais nas formas musicais e nos uníssonos e menos nas letras, que nos Tribalistas exibiam forte espírito libertário e utópico.

‘Barato total’ da MPB

São múltiplas as referências à cultura musical que irrompeu da explosão e imediata implosão da Tropicália, entre 1967 e 1968. A canção “Lua Comanche” é filha tardia do samba-rock de Jorge Ben Jor, que inseria o termo “comanche” em várias músicas gravadas com o Trio Mocotó (Comanche era o apelido de um dos integrantes do trio, João Parahyba). O reggae brasileiro “Clama Floresta” pede a salvação da mãe natureza e soa como sobrinho-neto de Gilberto Gil, mas também de seu duplo jamaicano Bob Marley.

A já citada “Baile de Máscaras (Recarnaval)” e “Lambe Lambe” se aventuram pela utopia carnavalizante da fase “barato total” da MPB, quando os jovens brasileiros inadaptados ao ímpeto de combate guerrilheiro à ditadura escaparam pela via do desbunde. Mas se aproximam mais ainda da fase disco-pop-marchinha da ex-mutante Rita Lee, da virada dos anos 1970 aos 1980.

Bala Desejo clama positivamente pela celebração hedonista, mas, mesmo o lado mais contemplativo e sisudo da década de 1970, faz-se ouvir em “Sim Sim Sim”. “Passarinha” e “Cronofagia (O Peixe)” se comunicam com a música séria e não tropicalista de Edu Lobo e com o culto à natureza da obra de Tom Jobim nos 1970 e 1980. “Nana del Caballo Grande” (sobre poema de Federico García Lorca), “Passarinha” e parte de “Dourado Dourado” são cantadas em espanhol, sugerindo parentesco com a nova trova cubana e a nova canção chilena das décadas de 1960 e 1970.

Nesse ensaio de reencontro com a utopia de unidade dos países da América Latina, Bala Desejo presta mais um tributo à MPB dos 1970, das canções temáticas interpretadas por Elis Regina, Fagner e Ney Matogrosso e compostas por Milton Nascimento, Belchior e outros. Essa vinculação é puxada por Zé Ibarra, que é filho de brasileiro com chilena e um dos destaques da turnê “A Última Sessão de Música”, de Milton.

O quarteto também surpreendeu em sua apresentação no Rock in Rio, mostrando que domina o palco. O aval da geração heroica da MPB faz retaguarda para a neotropicália do Bala Desejo desfilar sua juventude e energia.

*Com reportagem de Pedro Alexandre Sanches (leia a íntegra na nova edição da Revista J.P, já nas bancas)

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